meias no chão, por Mafalda Soares Pinho
Naquela manhã, o barulho da água do teu duche despertou-me de um sono que passei a sonhar. Já não sei com o que sonhei mas não deve ter sido nada de bom pois, naquela manhã, finalmente pensei em ti, em mim, em nós. Dei por mim a olhar para o prédio em frente ao teu, aquelas janelas tão bem alinhadas e, curiosamente, todas elas decoradas com cortinas de cores diferentes. Então reparei em como as tuas cortinas eram de cores diferentes, como o teu quarto era tão irritantemente bem decorado, com as cores semelhantes, nada a destoar, e os móveis tão bem alinhados como se alguém se desse ao trabalho de escolher, ao milímetro, o sítio onde pousá-los. Na cadeira do lado esquerdo da cama, descansava a tua roupa, impecavelmente dobrada; na cadeira do lado direito, não tão bem dobrada, jazia a minha roupa. No chão, a escassos centímetros daquele teu tapete tão felpudo e vistoso, estava um par de meias. As tuas meias. Totalmente desenquadradas naquela tela tão bem pintada. As tuas meias no chão e eu na tua cama, não pertencíamos a esse quadro. A água do teu duche continuava a correr longe de saber o que me ia na cabeça e eu vesti-me num segundo e quis sair como se nunca antes ali permanecesse mas cheguei à porta, pousei a mão na maçeta e tive de voltar atrás. Voltei ao teu quarto e peguei naquele par de meias, dobrei-o e pousei-o, qual flor delicada, em cima da tua roupa, na cadeira do lado direito. E então, sim, senti-me pronta para sair, mesmo, mesmo quando a água do teu duche se calou.
Mafalda Soares Pinho